Quando alguém adoece, é natural que receba afeto, simpatia e compreensão para superar o problema. O mesmo não acontece quando essa pessoa adoece por um transtorno mental. A doença, nesse caso, pode ser interpretada como sinal de fraqueza, de autoflagelo, de covardia. Guardada a devida distância, é uma reação semelhante a que os romanos manifestavam em relação aos portadores de lepra - uma condição considerada degradante, dolorosa e contagiante.
Melhor evitá-los, colocando-os em lugares bem longe das cidades, confinados. Foi essa a lógica que levou à criação dos asilos para os desvalidos na França, na Inglaterra e no Brasil, a partir do final do século XVIII.
Adoecer psiquicamente não é prerrogativa da modernidade. É tão humano quanto nascer ou morrer. Não há civilização conhecida, mesmo as mais primitivas e idealizadas, sem registro da existência de transtornos mentais como os descritos nos manuais nosológicos atuais.
O transtorno mental não escolhe nem cor de pele nem classe social. Dom João VI teve problemas com a mãe e nosso imperador Dom Pedro II, culto e admirado, deve ter sofrido mais com a doença do filho do que com a abdicação do trono aos republicanos. Quantos reis e rainhas fazem parte dessa lista? Quantos artistas consagrados conseguiram realizar grandes obras apesar de seus tormentos? Que sofrimentos não experimentaram Van Gogh, Virginia Woolf e Vladimir Maiakovski?
Estou tentando me lembrar de uma só família que tenha passado incólume por essa marca.
Como convencer as pessoas de que adoecer mentalmente é tão normal quanto ter hipertensão arterial, ou diabetes, ou hemorragia?
Em outubro do ano passado, a tradicional publicação britânica The Lancet, por obra de seu jovem e instigante editor, Richard Horton, decidiu abraçar a causa dos transtornos me n t a i s.
Foi criado um comitê executivo internacional encarregado de assessorar governos, políticos e organizações não-governamentais, bem como usuários dos serviços e seus familiares, no planejamento da ampliação do financiamento e dos recursos assistenciais comunitários efetivos, para reduzir o hiato existente entre a demanda e a disponibilidade de serviços para o cuidado da saúde mental no planeta, contemplando a proteção dos direitos humanos.
A iniciativa do Lancet, evocada pela presença marcante de Vikram Patel, Martin Prince e Shekhar Saxena, foi reforçada por um movimento intitulado Global Mental Health Movement, que está lançando chamado para uma ação global pela ampliação dos serviços de saúde mental. No dia 10 de outubro, dia mundial da Saúde Mental, a OMS lançou um programa semelhante em Genebra. O novo programa, de iniciativa da OMS, e outras ações para aprimorar a atenção aos portadores de transtornos mentais estão em andamento em vários países do mundo. A meta é que todo desvalido e marginalizado tenha seus direitos contemplados, que todo sujeito com problema, independente de cor, classe e diagnóstico, tenha o direito à liberdade, respeito e dignidade, que faça dele um semelhante apenas diferente. Todos os que quiserem participar do movimento do Global Mental Health devem acessar o site para se cadastrar, para ter acesso a vários artigos e documentos relacionados com a expansão de serviços de saúde mental em países de baixa e média renda per capita.
Adoecer de um transtorno mental é tão natural quanto os dizeres do verso do poeta Caetano Veloso, "de perto ninguém é normal".A estimativa é de que 25% da nossa população adulta irão exigir algum tipo de cuidado de saúde mental no espaço de um ano. A magnitude dessa realidade provoca um enorme descompasso entre demanda e disponibilidadede serviços, mesmo nos países desenvolvidos. O que dizer desse desequilíbrio nos países mais pobres?
No Brasil, aquela mãe que corre de um lado para outro com seu filho nos braços, em busca de tratamento, sabe o que é esse descompasso. Nos últimos anos, vimos uma redução substancial dos leitos psiquiátricos no país e a introdução progressiva dos novos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Vários pacientes saíram da situação de confinamento e voltaram para casa. Alguns poucos o fizeram contando com o recurso previdenciário do governo, muitas vezes o único fornecido para aquela família. Estes recuperaram a dignidade e a cidadania. Vários, porém, perderam o contato com os parentes e permaneceram na situação asilar, muitas vezes em condições precárias e desumanas. Os profissionais brigam entre si. Alguns defendem os hospitais, outros o atendimento comunitário. O paciente fica no meio, à mercê da disputa.
O que mais importa, na verdade, é que as alternativas de tratamento, em hospitais ou em CAPS, sejam humanizadas e condignas e efetivas, ou seja, compostas, de fato, de uma terapêutica especializada e de padrão internacional. São vários os tratamentos disponíveis: medicamentosos, psicoterápicos e psicossociais, muitos com eficácia comprovada.
Há meios de se distinguir os que funcionam dos que nada adiantam. Há muitos casos em que não adianta atender somente a situação de crise. Pode ser preciso estender o tratamento por toda a vida. É enorme o impacto de um tratamento bem escolhido na vida do sujeito e de seus familiares, tanto do ponto vista da qualidade de vida quanto do ponto de vista econômico.
Ah! Mas o tratamento escraviza, deixa a vítima dependente da pílula, dirão os críticos do uso continuado, por exemplo, de medicação psicotrópica. Sou defensor da interpretação antagônica: o tratamento liberta, deixa o sujeito em condição de respirar, de criar e até mesmo de sorrir e sonhar.
O sistema de saúde mental atual tem muito para melhorar e aprimorar. Carece de articulação entre os diferentes níveis de atenção (Programa Saúde da Família - PSF, ambulatórios, CAPS, leitos para internação de casos agudos, leitos para internações mais prolongadas), além de distribuição mais homogênea de profissionais bem treinados entre as diversas regiões geográficas. A análise de todos os serviços e recursos humanos disponíveis, por regiões do país, realizada por um grupo de trabalho, recentemente, indicou várias recomendações a serem implementadas .
Uma questão importante é a expansão do número de leitos psiquiátricos em unidades do hospital geral. A internação psiquiátrica requer vários exames médicos e, quando realizada no âmbito do hospital geral, tende a ser de curta duração. Receber pessoas com transtornos mentais em enfermarias de hospitais clínicos auxiliaria a reduzir o estigma enfrentado pelos pacientes e por seus familiares. O Hospital São Paulo, da Escola Paulista de Medicina, da Universidade Federal de São Paulo, conta com enfermaria de psiquiatria há mais de trinta anos. Alguns hospitais de ponta no país, entre eles o Albert Einstein,
de São Paulo, estende atualmente seus cuidados aos portadores de transtornos mentais. É fundamental a continuidade do programa de desinstitucionalização progressiva dos pacientes remanescentes em situação asilar, principalmente nos hospitais reconhecidamente deficientes e com histórico de abuso dos direitos humanos.
Os transtornos mentais são responsáveis por 18% da sobrecarga global das doenças no país, mas contam apenas com 2,5% do orçamento da saúde. É preciso superar esse descompasso, ampliarmos cursos de graduação e pós-graduação especializados em enfermagem psiquiátrica, providenciar treinamento das equipes do Programa de Saúde da Família nos cuidados básicos em saúde mental e desenvolver cursos de extensão para profissionais que possam atuar na gestão dos serviços de saúde mental.
Para um país que pretende reduzir a desigualdade social, é essencial cuidar de seus desprotegidos com dignidade. Que se amplie o financiamento à saúde em direção à oferta mais eqüitativa dos serviços destinados aos portadores de transtornos mentais, pois não há saúde sem saúde mental
Jair de Jesus Mari
Membro do Comitê Executivo do
Professor titular do Departamento de Psiquiatria da Universidade
Federal de São Paulo e Professor honorário do
Population Research Department - Institute of Psychiatry - Kings
College