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terça-feira, 21 de abril de 2009

Um pouco sobre Dom Quixote


MIGUEL DE CERVANTES

O Retrato é do espanhol Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616), autor de Dom Quixote de La Mancha, livro que marca o início do romance moderno e é um dos mais sólidos pilares da literatura universal. Pois bem, a exceção para Cervantes vem exatamente a propósito disso: O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha completou em 2005 quatro séculos de sua primeira publicação.Cervantes — assim como Camões e Shakespeare, seus contemporâneos — é um desses raríssimos e prodigiosos artistas que conseguem sobrepujar o tempo e o espaço. Conforme uma pesquisa da Unesco realizada em 2002, o QUIXOTE é o segundo livro mais lido da história da humanidade, atrás apenas da Bíblia. É também um dos mais traduzidos. "Num lugar de La Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me, vivia, não há muito, um fidalgo, dos de lança em cabido, adarga antiga, rocim fraco, e galgo corredor." Assim começa o livro. Conta a história de um fidalgo decadente, Alonso Quijano. De tanto ler novelas de cavalaria, Quijano perde o juízo e transforma-se em Dom Quixote, um cavaleiro andante. Seu cavalo, um pangaré fracote, é rebatizado com o nome de Rocinante, por ele considerado um fogoso corcel. Como legítimo herói de cavalaria, Quixote dispõe-se a percorrer o mundo e lutar contra a injustiça, corrigir malfeitos, salvar donzelas em perigo. Sua esperança é conquistar reconhecimento moral por seus elevados esforços e também honrar o nome de sua amada, Dulcinéia del Toboso. A musa inspiradora do fidalgo não passa de uma rude camponesa, mas, em sua loucura, ele a vê como formosa donzela. Aliás — terrível Cervantes! —, o verdadeiro nome dela é Aldonça Lourenço.Para também participar de suas heróicas empreitadas, o cavaleiro consegue convencer seu vizinho Sancho Pança. É verdade que os objetivos de Sancho não são nada românticos. Ele aceita a proposta porque o Quixote lhe acena com a possibilidade de conquistar benefícios materiais e ser dono de sua própria terra. Forma-se assim uma das mais consagradas parcerias da literatura. Diferentes em tudo: Quixote, o magro, viciado na leitura de novelas e sonhador alucinado; e Sancho, o escudeiro gordo, que nunca leu nada, sempre colado à realidade. Apesar disso, são amigos para o que der e vier. Talvez se possa dizer que um dos ingredientes que mantêm de pé o romance de Cervantes seja a ironia — um recurso tipicamente moderno. As aventuras do Quixote, o Cavaleiro da Triste Figura, são na verdade uma paródia das novelas medievais.
Mas o que de fato sustenta essa história é a perenidade dos grandes valores humanos: o desejo de justiça, o amor, a amizade e o eterno debate sobre loucura e razão.
Ao longo destes 400 anos, o Quixote inspirou, no mundo inteiro, todo tipo de manifestação artística. Aqui estão, como representantes das artes visuais, o espanhol Pablo Picasso e o brasileiro Candido Portinari, dois grandes pintores do século XX. Como este é um boletim de poesia, também comparecem poetas — exatamente dois dos mais destacados do século passado: Carlos Drummond de Andrade e o argentino Jorge Luis Borges (1899-1986). Os textos de Drummond vêm de "Quixote e Sancho, de Portinari", uma série de 21 poemas escritos com base em igual número de desenhos do pintor, criados em 1956. Os poemas apareceram no livro de Drummond Impurezas do Branco, de 1973, mas haviam saído antes numa edição fora de comércio, junto com trechos de Cervantes e os desenhos de Portinari.Ao lado, estão transcritos quatro dos 21 textos drummondianos. No primeiro, "Soneto da Loucura", discute-se sobre a perda da razão de Alonso Quijano. Nos blocos IV e XI o que vem à tona são as diferentes visões de mundo do Quixote e de Sancho Pança. No poema XXI, o último da suíte, Drummond trata da morte de Alonso Quejana. O boletim se fecha com um soneto de Jorge Luis Borges, "Sueña Alonso Quijano", que tem, mais ou menos, o mesmo assunto do poema XXI, de Drummond. O mestre argentino, como sempre, apresenta um achado brilhante: "Foi o fidalgo um sonho de Cervantes / E Dom Quixote um sonho do fidalgo."Não se impressionem com a variação do sobrenome: Quejana, Quijano. O bom-humor de Cervantes era mesmo poderoso. Na primeira página do livro, ele avisa: "Querem dizer que tinha o sobrenome de Quijada ou Quesada, que nisto discrepam algum tanto os autores que tratam na matéria; ainda que por conjeturas verossímeis se deixa entender que se chamava Quijana. Isto, porém pouco faz para a nossa história."Portanto, como escreve Drummond no poema "V / Um em Quatro" (não transcrito aqui), lá se vão, pelos séculos afora, "um cavaleiro um cavalo um jumento um escudeiro". Viva Cervantes. Viva o engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha.

Drummond e Portinari


"A minha casa pobre é rica de quimera / e se vou sem destino a trovejar espantos, / meu nome há-de romper as mais nevoentas eras, / tal qual Pentapolim, o rei dos Garamantas."
Assim começa o primeiro dos 21 poemas de Carlos Drummond de Andrade glosando os 21 desenhos de Cândido Portinari que celebram o Quixote, de Cervantes. O álbum, editado muito apropriadamente pela Dom Quixote, é um belo objecto que apela ao prazer dos sentidos. Na introdução, são explicadas as circunstâncias da sua produção. Em 1956, Portinari foi aconselhado pelo médico a abandonar o uso das tintas, cuja intoxicação lhe poderia ser fatal. O pintor passou a usar os lápis de cor, material usado na série de 21 desenhos aqui reproduzidos. Só após a morte, o filho, João Cândido, vendeu a série D. Quixote. Os textos de Cervantes que inspiraram, em concreto, estes desenhos, são aqui publicados seguindo a tradução de Miguel Serras Pereira para a nova versão com que a editora portuguesa celebrou o quarto centenário da primeira impressão do livro de Cervantes. Ficam, além dos desenhos de Portinari, os versos de Drummond.



I / Soneto da loucura

A minha casa pobre é rica de quimerae se vou sem destino a trovejar espantos,meu nome há de romper as mais nevoentas erastal qual Pentapolim, o rei dos Garamantas.
Rola em minha cabeça o tropel de batalhasjamais vistas no chão ou no mar ou no inferno.Se da escura cozinha escapa o cheiro de alho,o que nele recolho é o olor da glória eterna.
Donzelas a salvar, há milhares na Terrae eu parto e meu rocim, corisco, espada, grito,torto endireitando, herói de seda e ferro,
E não durmo, abrasado, e janto apenas nuvens,na férvida obsessão de que enfim a benditaIdade de Ouro e Sol baixe lá nas alturas.

II/ Sagração

Rocinantepasta a erva do sossego.A Mancha inteira é calma.A chama oculta ardenesta fremente Espanha interior.
De geolhos e olhos visionáriosme sagro cavaleiroandante, amantede amor cortês e minha dama,cristal de perfeição entre perfeitas.
Daqui por dianteé girar, girovagar, a combatero erro, o falso, o mal de mil semblantese recolher no peito em sanguea palma esquiva e raraque há de cingir-me a frontepor mão de Amor-amante.
A fama, no capimque Rocinante pasta,se guarda para mim, em tudo a sinto,
sede que bebo,vento que me arrasta.



III / O esguio propósito

Caniço de pescafisgando o ar,gafanhoto montadoem corcel magriz,espectro de grilocingindo loriga,fio de linhaà brisa torcido, relâmpago ingênuo furorde solitárias horas indormidasquando o projeto a noite obscura.
Esporeiao cavalo,esporeiao sem-fim.